A Constituição da República estabelece que o ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) poderá ser seletivo em função da essencialidade1 das mercadorias e dos serviços inseridos em seu âmbito de incidência.
A seletividade, pouco conhecida pelos contribuintes, é instrumento que tem por objetivo a proteção de inúmeros princípios constitucionais, como a proteção da dignidade da pessoa humana.
Haveria, por meio da seletividade, uma relação inversamente proporcional entre a essencialidade e o ICMS que deveria incidir sobre a operação. Ou seja, quanto mais essencial determinada mercadoria ou serviço, menor deveria ser o tributo cobrado para a sua comercialização.
Em uma leitura superficial, a redação da Constituição poderia atrair a conclusão de que a seletividade seria uma faculdade dos Estados (“poderá ser seletivo…”), que poderiam (ou não) estabelecer alíquotas menos gravosas a mercadorias e serviços considerados essenciais.
Essa interpretação, no entanto, precisa ser compreendida com cautela.
Há, realmente, uma faculdade atribuída ao legislador estadual, que não é obrigador a aplicar a seletividade. Para tanto, bastaria que não fizesse qualquer diferenciação nas alíquotas incidentes sobre mercadorias e serviços sujeitos ao tributo.
É notório, no entanto, que todos os Estados utilizam dessa prerrogativa, estabelecendo alíquotas diferentes que variam a depender da mercadoria ou serviço comercializado. Essa é, e sempre foi, a prática comum ao ICMS.
Os estudiosos do direito tributário defendem há tempos, no entanto, que uma vez que haja a utilização do critério da seletividade, ele sempre deve orientar-se pela essencialidade das mercadorias ou serviços, sob pena de esvaziamento da regra constitucional – e, por via reflexa, de outros preceitos constitucionais.
O argumento central para essa conclusão tem por núcleo o raciocínio de que a observância de princípios constitucionais de tutela da pessoa humana e do contribuinte, quando atingidos pela fixação de alíquotas mais elevadas sobre produtos essenciais, que deveriam observar a seletividade, retiraria do legislador qualquer discricionariedade, de forma que a sua atividade estaria subordinada a essa razão inversa entre alíquota e imprescindibilidade.
Em outras palavras: quanto mais essencial for a mercadoria ou serviço, menor deveria ser o ICMS cobrado para a sua comercialização.
O ímpeto arrecadatório dos Estados, no entanto, por vezes parece esquecer que há no Brasil, ainda, Constituição da República que fixa diretrizes que deveriam, sempre e necessariamente, ser observadas.
Ignorando por completo a essencialidade, todos os Estados da Federação aprovaram legislações que estabeleciam as mais elevadas alíquotas possíveis do tributo para algumas das mercadorias e serviços mais essenciais à realidade social atual: a energia elétrica e os serviços de telecomunicação.
Certos de que seria impossível à sociedade escapar da tributação em operações tão comuns a realidade atual, os Estados organizaram-se com a pretensão de proteger exclusivamente a arrecadação aos cofres públicos, mesmo que ignorando todas as regras de proteção aos contribuintes.
Como não poderia deixar de ser, e considerada a tributação completamente exagerada na aquisição de bens e serviços inerentes à própria existência da sociedade como a conhecemos, finalmente a discussão alcançou o Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a repercussão geral e a necessidade de enfrentar o tema.2
Em 18 de dezembro de 2021, os Ministros deliberaram sobre o tema, analisando pedido individual feito por contribuinte em face da legislação do Estado de Santa Catarina, que fixava a alíquota da energia elétrica e de serviços de telecomunicação em 25% – superior, portanto, à alíquota geral do Estado, que era de 17%.
Em síntese, os Ministros entenderam que, uma vez feita a opção pela seletividade (com a previsão de alíquotas diferenciadas a depender da mercadoria ou serviço), os Estados estariam obrigados ao respeito da essencialidade. E, nesse aspecto, não haveria dúvidas de que a energia elétrica (presente em 99,8% das residências brasileiras) e as telecomunicações (presente, por meio da telefonia e internet, nas mãos de 98,2% da população brasileira) são essenciais.
Com isso, e nas palavras do voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, relator do caso, concluiu-se pelo “desvirtuamento da técnica de seletividade”, na medida em que haveria evidente “maior onerosidade sobre os bens de primeira necessidade”, o que, em última análise, prejudica a proteção a direitos fundamentais previstos na Constituição.
Esse foi o fundamento que deu origem ao Tema de Repercussão Geral n. 745, que em termos simples estabeleceu que, uma vez que haja a adoção da seletividade (com alíquotas diferenciadas para produtos e serviços diferentes), não seria possível adotar alíquotas maiores para as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação.
Embora a decisão não seja aplicável para todos os contribuintes ou a outros Estados, a importante decisão revelou o posicionamento do STF e abriu as portas para que, finalmente, as legislações de todos os Estados fossem enfrentadas por contribuintes em todo o país.
O precedente, aliás, foi suficiente para que o Procurador-Geral da República buscasse a aplicação da tese para a legislação do Estado do Rio de Janeiro, em um primeiro momento, cuja mais recente alteração legislativa havia aumentado o ICMS sobre energia elétrica e serviços de telecomunicação, resultando em alíquota efetiva superior a 30%.3
A PGR, ainda, formulou a mesma proposição em mais 25 ações diretas de inconstitucionalidade4 em face da legislação de quase todos os Estados da Federação, além do Distrito Federal.
O STF, desta vez em decisões com efeitos aplicáveis a todos os contribuintes do Estado, já enfrentou o tema para os Estados de Santa Catarina (ADI n. 7.117), Pará (ADI n. 7.111), Tocantins (ADI n. 7.113), Minas Gerais (ADI n. 7.116), Rondônia (ADI n. 7.119), Goiás (ADI n. 7.122), Rio Grande do Sul (ADI n. 7.132), Ceará (ADI n. 7.124), Paraíba (ADI n. 7.114) e, também, para o Distrito Federal (ADI n. 7.123).
O posicionamento da Corte tem se orientado pela manutenção do entendimento manifestado no Tema n. 745: a seletividade implica, obrigatoriamente, na observância de essencialidade, havendo que se respeitar a razão inversamente proporcional na fixação da alíquota do ICMS, que não pode superar a alíquota geral quando se está diante de operações com bens de primeira necessidade.
Importante observar que, infelizmente, o STF manifestou-se desde a fixação do Tema n. 745 pela modulação de efeitos de sua decisão, como tem sido o hábito em discussões tributárias, com a finalidade de proteger a arrecadação pública.
Nesse cenário, há o entendimento de que essas decisões só vão produzir efeitos a partir de 2024, possibilitando aos Estados a diminuição de sua expectativa orçamentária sem prejudicar as atividades estatais, ressalvado o direito dos contribuintes que já haviam pleiteado a repetição (dos últimos 05 anos…) em ações distribuídas até 05/02/2021.
Em outras palavras, somente vão obter o direito à restituição dos últimos 05 anos os contribuintes que já haviam dado início as suas discussões judiciais sobre o assunto até 05/02/2021; aos que pleitearam judicialmente esse direito após a referida data, não será possível a restituição dos pagamentos indevidamente realizados.
Em paralelo à atuação do STF, que reconheceu algo óbvio a qualquer pessoa (essencialidade da energia elétrica e dos serviços de comunicação), também o Congresso Nacional se movimentou para regulamentar o tema, aprovando a Lei Complementar n. 194/22.
Dentre outras modificações da legislação, foi prevista vedação expressa aos Estados quanto à fixação de alíquotas em patamar superior aos das operações em geral para energia elétrica, comunicações e, também, combustíveis, gás natural e transporte coletivo.
As alterações legislativas, embora fundamentais para coibir o abuso dos Estados sobre a matéria, não dispensam a necessidade de análise do restante das ADIs em trâmite no STF, sobretudo para que reconheça expressamente se o direito à restituição terá seus efeitos limitados, como nos casos já julgados até o momento.
Por isso, é fundamental que todos os contribuintes estejam atentos ao tema em seus respectivos Estados, para que possam evitar o recolhimento indevido, em caráter imediato, em especial com fundamento na LC n. 194/22, bem como aproveitar eventuais oportunidades de recuperação do ICMS indevidamente pago, a depender da eventual modulação de efeitos pelo STF.
Caso haja necessidade de maiores esclarecimentos, nossa Equipe Tributária encontra-se à disposição.
CHENUT OLIVEIRA SANTIAGO – SOCIEDADE DE ADVOGADOS
Vitor S. Rodrigues
OAB/SP 381.261
1 Art. 155, §2°, III, da CRFB.
2 RE n. 714.139
3 ADI n. 7077.
4 ADIs 7108 (PE), 7109 (MS), 7110 (PR), 7111 (PA), 7112 (SP), 7113 (TO), 7114 (PB), 7115 (MA), 7116 (MG), 7117 (SC), 7118 (RR), 7119 (RO), 7120 (SE), 7121 (RN), 7122 (GO), 7123 (DF), 7124 (CE), 7125 (ES), 7126 (AP), 7127 (PI), 7128 (BA), 7129 (AM), 7130 (AL), 7131 (AC) e 7132 (RS).