Artigos - Postado em: 09/01/2023

Dever de pagamento no contrato administrativo e vedação ao enriquecimento sem causa

Por Victor Scholze1

 

Introdução

Quando a Administração Pública recebe material, prestação de serviço ou obra, deve realizar o devido pagamento ao particular responsável pela execução do objeto contratado. Apesar do procedimento de execução e pagamento ser previsto em contrato e na lei, acaba sendo recorrente a inadimplência por alguns órgãos administrativos, seja por falta de recursos ou por interesses políticos variados.

Nesse contexto, é pertinente avaliar os fundamentos jurídicos e providências que impõem o dever de pagamento no contrato administrativo, inclusive sob a ótica do princípio de vedação ao enriquecimento sem causa.

Legislação aplicável

O direito de propriedade é garantia fundamental estatuída no art. 5º, inc. XXII, da Constituição2. É norma que provém da própria organização do Estado e da ordenação social. Também deve ser preservado na relação entre administrado e Administração Pública.

Em nosso ordenamento, ao ser vedado o confisco de bens por parte do Estado, avulta-se juridicamente descabida a apropriação de bens ou de direitos privados sem contrapartida. Em outras palavras, não pode a Administração furtar-se da obrigação do pagamento devido ao particular.

São etapas da despesa pública o empenho, a liquidação e o pagamento. A liquidação se dá pela adequada execução contratual e caracteriza o crédito do administrado, com base nos respectivos documentos comprobatórios. A Lei nº 4.320/1964, estabelece os requisitos para liquidação e pagamento:

Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.

  • 1° Essa verificação tem por fim apurar:

I – a origem e o objeto do que se deve pagar;

II – a importância exata a pagar;

III – a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.

O § 2º, inc. III, do dispositivo legal mencionado define que a liquidação de despesa terá por base “os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço” 3. Estando presentes os requisitos legais, com prova da execução, é incontroverso que o pagamento deve ser realizado ao particular.

O art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993 dispõe expressamente que nem eventual nulidade do contrato administrativo exime a Administração de indenizar o particular pelos serviços prestados. A Lei nº 14.133/2021 – Nova Lei de Licitações – reproduziu a mesma regra:

Lei nº 8.666/1993 Lei nº 14.133/2021
Art. 59.  A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos. Parágrafo único.  A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.  

Art. 149. A nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, bem como por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe seja imputável, e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa.

 

 

A previsão legal tem razão de ser em contraponto ao abuso das prerrogativas do Poder Público. Visa evitar enriquecimento sem causa e confisco pela Administração Pública. De outro lado, objetiva preservar o princípio da segurança jurídica, com expressão na proteção da confiança do administrado na Administração.

Importante lembrar que, nos termos do art. 5º da Lei nº 8.666/1993, a Administração deve realizar os pagamentos obedecendo “a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades” 4. No mesmo sentido, conforme a Lei nº 14.133/2021, a inobservância imotivada da ordem cronológica de pagamento ensejará a apuração de responsabilidade do agente responsável, cabendo aos órgãos de controle a sua fiscalização 5.

Significa que a ausência de pagamento é ilegalidade obrigacional, ao passo que descumprir a ordem cronológica de pagamento (“furar a fila”), configura ilegalidade tipificada como crime.

É princípio geral de direito que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza 6. A ordem jurídica não serve ao ente público que recebe integralmente a prestação do particular, mas ao mesmo tempo não realiza os pagamentos de maneira regular.

Jurisprudência

O Superior Tribunal de Justiça – STJ possui jurisprudência no sentido de que na anulação do contrato administrativo, quando o contratado tiver realizado investimentos para o cumprimento de suas obrigações, permanece o dever de ressarcimento pela Administração Pública:

[…]

  1. Alegação de invalidade pela própria parte que o engendrou, resultando na violação do princípio que veda a invocação da própria torpeza ensejadora de enriquecimento sem causa 3. Acudindo o terceiro de boa-fé aos reclamos do Estado e investindo em prol dos desígnios deste, a anulação do contrato administrativo quando o contratado realizou gastos relativos à avença, implica no dever do seu ressarcimento pela Administração. Princípio consagrado na novel legislação de licitação (art. 59, Parágrafo Único, da Lei n.º 8.666/93). […]
  2. O dever de a Pessoa Jurídica de Direito Público indenizar o contratado pelas despesas advindas do adimplemento da avença, ainda que eivada de vícios, decorre da Responsabilidade Civil do Estado, consagrada constitucionalmente no art. 37, da CF.
  3. Deveras, “… se o ato administrativo era inválido, isto significa que a Administração, ao praticá-lo, feriu a ordem jurídica. Assim, ao invalidar o ato, estará, ipso fato, proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica. Seria iníquo que o agente violador do direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as consequências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de que, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé. Acresce que, notoriamente, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade. Donde quem atuou arrimado neles, salvo se estava de má-fé (vício que se pode provar, mas não pressupor liminarmente), tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de seriedade. Este mínimo consiste em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem neles confiou como, de resto, teria de confiar. (Celso Antônio Bandeira de Mello, in Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 14ª ed., 2002, p. 422-423) 7.

 

O Tribunal de Contas da União – TCU também possui jurisprudência na linha de que eventual nulidade do contrato administrativo não exonera a Administração de indenizar pelo que foi executado e pelos prejuízos comprovados:

[…] A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado e por outros prejuízos regularmente comprovados, nos termos do art. 59, parágrafo único, da Lei 8.666/1993.8

A Corte de Contas também entende que nem mesmo a irregularidade da documentação de habilitação permite a retenção de pagamento daquilo que já foi executado pela contratada:

Verificada a irregular situação fiscal da contratada, incluindo a seguridade social, é vedada a retenção de pagamento por serviço já executado, ou fornecimento já entregue, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração. 9

Dessa forma, a entrega de bem ou execução de serviço pela empresa deve ter a contrapartida de pagamento pelo órgão público, em qualquer circunstância, mesmo se a prestação ocorreu em ambiente de nulidade. Impera em nosso ordenamento o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, a ser respeitado inclusive pelo Poder Público.

Conclusão

O regular adimplemento das obrigações estatais se presta a beneficiar o próprio Poder Público. Caso os administrados tivessem que suportar os ônus na relação com a Administração, sem equidade mínima, as propostas nas licitações passariam a considerar os custos da mora estatal e ser mais onerosas. Por consequência, os preços se tornariam cada vez mais altos e onerariam os cofres públicos.

De outro lado, a ausência recorrente de pagamento ocasiona desinteresse dos particulares em contratar com a Administração Pública. Hodiernamente, a costumeira inadimplência de muitos entes públicos tem afastado as melhores empresas dos certames públicos.

O pagamento regular e tempestivo se consubstancia em expressão do interesse público, na medida em que incentiva as melhores empresas a prestar serviços, com maior qualidade e menor preço.

Note-se ainda que pode ocorrer prejuízo ao erário pela morosidade administrativa excessiva em cumprir obrigações e realizar o pagamento devido, diante da incidência de juros e correção monetária, sendo que, quanto maior a demora em indenizar, maior o dano aos cofres públicos. Prejuízo que poderia ser evitado pelo adimplemento regular das obrigações.

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[1] Advogado e Consultor Jurídico com atuação em Direito Público, regulatório, licitações e contratos administrativos, infraestrutura, estruturações societárias, tribunais de contas, contencioso administrativo e judicial.

[2] Constituição Federal: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXII – é garantido o direito de propriedade”.

[3] Lei nº 4.320/1964: […] Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.[…] § 2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base: […] III – os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço.

[4] Lei nº 8.666/1993. Art. 5o  Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada.

[5] Lei nº 14.133/2021. Art. 141. No dever de pagamento pela Administração, será observada a ordem cronológica para cada fonte diferenciada de recursos, subdividida nas seguintes categorias de contratos: […] § 2º A inobservância imotivada da ordem cronológica referida no caput deste artigo ensejará a apuração de responsabilidade do agente responsável, cabendo aos órgãos de controle a sua fiscalização.

[6] O princípio, há muito tempo consagrado, remete ao adágio romano nemo auditur turpitudinem allegans.

[7] STJ. REsp 547.196/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/04/2006, REPDJ 19/06/2006, p. 100, DJ 04/05/2006, p. 134.

[8] TCU. Acórdão nº 6.877/2016 – 1ª Câmara.

[9] TCU. Acórdão nº 964/2012 – Plenário

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