Artigos - Postado em: 20/12/2022

A dinâmica do ônus da prova no processo civil

Por Nathalia Faria de Carvalho.

 

O art. 373 do Código de Processo Civil estabelece uma regra geral para a distribuição do ônus da prova no processo judicial, determinando, de forma simplificada, que caberá ao Autor da ação a prova dos fatos constitutivos de seu direito e, ao Réu, a prova dos fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito do Autor.

Em suma, a norma determina que é responsabilidade do Autor demonstrar as razões que fundamentam a tutela jurisdicional de seu direito e, em contrapartida, caberá ao Réu explicar por que o Autor não teria aquele direito. Contudo, em que pese a distribuição da prova fundamentada em lei, a norma também estabelece que compete ao juiz, diante do caso concreto, estabelecer as regras para distribuição do ônus da prova, podendo, inclusive, inverter a regra processual, o que chamamos de “inversão do ônus da prova”.

Essa distribuição dinâmica do ônus probatório surge da necessidade de flexibilizar a regra geral da teoria estática da prova, baseando-se nas situações particulares que cada caso apresenta para, diante da análise concreta, determinar quais provas são necessárias e de quem seria o dever de produzi-las. Isso dá ao juiz a oportunidade de vislumbrar qual parte possui maior facilidade de produzir uma prova necessária para o desfecho da lide, colocando-as em posição de maior equidade, a fim de facilitar o julgamento do direito que está sendo pleiteado de forma mais justa.

Contudo, a distribuição diversa do ônus da prova requer o preenchimento de requisitos que buscam coibir eventual conduta arbitrária do juiz, sendo utilizada apenas em casos em que houver necessidade, de acordo com art. 373, §1º do CPC. Assim, a decisão deverá ser fundamentada, expondo os motivos que levaram o magistrado a decidir pela inversão do ônus probatório, sendo que, a parte que não ficar satisfeita com a decisão poderá utilizar-se do Agravo de Instrumento como recurso cabível, consubstanciado no art. 1.015, XI, do CPC.

Nesse sentido, os requisitos para a distribuição do ônus da prova diante do caso concreto perfazem a análise da possibilidade de se produzir a prova pela parte, bem como da dificuldade de fazê-lo. Por exemplo, sabe-se que é impossível fazer prova de fato negativo, o que é chamado na doutrina de “prova diabólica”. Essa prova constitui naquela que é impossível de ser produzida ou excessivamente difícil para a parte a quem compete o ônus de fazê-la. A título de exemplo, não é possível exigir que alguém prove que não é proprietário de nenhum imóvel, afinal, para isso, teria que ser juntada ao processo certidões de registros do mundo inteiro, o que é inviável, logo, prova impossível e excessivamente difícil.

Vale ressaltar que a inversão do ônus da prova, embora se trate de exceção à regra geral, é vista de outra forma no âmbito das demandas consumeristas. Diferente do processo cível comum, os processos que envolvem consumidores são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, que estabelece, em seu art. 6º, VIII, a inversão do ônus da prova como direito básico do Consumidor. Assim, na esfera do CDC, a inversão do ônus da prova ocorrerá quando o juiz entender que há hipossuficiência da parte a quem compete o dever da prova, ou verossimilhança das alegações do Autor, fazendo com que o Réu tenha que fazer a prova da ausência daquele direito.

Veja que, diferente do processo civil comum, os processos consumeristas pressupõem, em regra, que uma parte é hipossuficiente em relação a outra e, por isso, teria dificuldade de produzir a prova que lhe compete. Todavia, a inversão do ônus da prova não pode ocorrer de forma automatizada – embora muitos tribunais assim apliquem – devendo ser fundamentado seu pedido e demonstrados os requisitos para sua aplicação.

Ainda, retomando à seara do processo civil, o ônus probatório deverá também recair sob a parte que detêm melhores condições de suportá-lo (ainda que não exista uma relação de hipossuficiência), a fim de se assegurar o devido contraditório e o direito à tutela jurisdicional efetiva, sem que, para isso, a parte tenha que suportar um ônus excessivo. Contudo, a inversão do ônus da prova não exime o Autor da ação de provar, minimamente, os fatos que constituem o seu direito, não podendo se valer do seu direito à tutela jurisdicional de forma desarrazoada.

Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça já proferiu entendimento consolidado no sentido de que “a inversão do ônus da prova não dispensa a comprovação mínima, pela parte autora, dos fatos constitutivos do seu direito”1. Dessa forma, a distribuição do ônus probatório deve ser analisada e aplicada com cautela pelo magistrado, a fim de tão somente facilitar o andamento e julgamento do processo, permitindo que o Autor tenha maior chance de alcançar suas pretensões, e não deixe de atingir seu pedido por simples incapacidade e falta de recursos em produzir a prova necessária.

Porém, deve-se ter em mente que a inversão do ônus da prova, especialmente no direito civil, deve ser sempre considerada uma exceção à regra geral, a fim de que não se impute ao Réu o ônus de provar fatos que competem exclusivamente ao Autor.

Da mesma forma, conforme mencionado, a distribuição da prova não pode gerar à outra parte o dever de provar fato negativo (prova diabólica), devendo a decisão ser fundamentada, indicando sobre quais fatos incidirão os encargos probatórios alterados, a fim de permitir à parte a desincumbência desse ônus.

Por certo, a produção de provas é importante etapa do processo para a efetiva entrega da prestação jurisdicional e a correta distribuição do ônus em produzi-la reduz o custo do litígio, bem como promove pacificação social, preservando-se a equidade entre as partes.

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[1] AgInt no Resp 1.717.781/RO, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 05/06/2018, DJe de 15/06/2018.

 

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