Racismo no Consumo: Por que o Código da L’Oréal pode virar referência — e alerta — para todo o mercado

A divulgação do Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro, iniciativa empresarial inspirada no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e voltada a combater o racismo nas relações de consumo pela L’Oréal, reacende um debate central: como alinhar práticas de inclusão à legislação vigente sem criar conflitos normativos, preservando a segurança jurídica para fornecedores e garantindo a efetividade para consumidores negros?

1. Autorregulação como vetor normativo.

O código lançado não possui força coercitiva típica das leis, mas pode ser enquadrado como uma soft law, com potencial de influenciar condutas e inspirar padrões setoriais.

Em conversa sobre o tema com a consultora de carreiras negras Rafaela Amorim, esta ressaltou que, “por se tratar de uma empresa referência em seu setor, a iniciativa incentiva, de forma estratégica, o setor privado a implementar práticas como essas e mantém a pauta racial ativa no cenário corporativo”.

Até porque, como bem lembrado pela consultora, em um país com mais de 110 milhões de pessoas que se autodeclaram negras, as iniciativas de empresas do setor privado, como a da L’Oréal, provocam questionamentos, geram visibilidade e pavimentam caminhos para novas normas, políticas e transformações jurídicas.

Além disso, Rafaela lembra que pensar racialidade no contexto de empresas privadas “é uma estratégia de negócio assertiva.” Ou seja, trata-se não apenas de um imperativo ético, mas de adequação a uma realidade demográfica e de mercado.

Do ponto de vista jurídico-normativo, sabemos que a autorregulação não substitui a lei, mas pode se tornar fator de conformidade para fornecedores, reduzindo riscos de responsabilização, tornando-se uma ação de boas práticas consumerista.

A experiência comparada demonstra que políticas privadas de inclusão, quando amplamente difundidas por empresas de grande porte, tendem a se converter em padrões setoriais.

No Brasil, isso pode repercutir na atuação de Órgãos de defesa do consumidor e até na elaboração de resoluções do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor ou legislações estaduais e municipais voltadas à proteção de grupos vulneráveis.

Contudo, vale um alerta, a incorporação de protocolos internos requer clareza, objetividade e compatibilidade com a legislação vigente, evitando obrigações excessivas ou imprecisas que possam gerar litígios por interpretações divergentes, ainda mais em um tema tão sensível e caro para a população brasileira.

2. Racismo estrutural e enquadramento jurídico

O racismo nas relações de consumo é tipificado e sancionado pelo ordenamento jurídico por meio de:

  • Lei nº 7.716/1989 (crimes resultantes de preconceito de raça ou cor);
  • CDC (arts. 6º, 39 e 51);
  • Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010).

E a implementação de medidas como capacitação antirracista, proibição de revistas seletivas e garantia de acesso a produtos adequados é juridicamente defensável e alinha-se ao dever legal de evitar práticas abusivas e discriminatórias.

Todavia, é preciso estabelecer parâmetros operacionais seguros, pois na defesa do fornecedor, preocupa o risco de responsabilização objetiva por condutas individuais de empregados que descumpram diretrizes, mesmo que a empresa tenha adotado todas as medidas preventivas.

Na prática forense se observa condenações rotineiras de empresas por atos de seus colaboradores por atos discriminatórios e o desafio é desenhar protocolos que permitam provar a adoção e o cumprimento efetivo dessas medidas, reforçando a boa-fé e a diligência do fornecedor, de forma que as condutas possam ser individualizadas.

Por isso defendo que o protocolo deve permitir a comprovação de adoção de medidas, resguardando o fornecedor de responsabilização objetiva decorrente de condutas individuais de colaboradores, em linha com jurisprudência consolidada do STJ acerca da responsabilidade objetiva — que exige nexo causal claro e apresenta excludentes como culpa de terceiro ou caso fortuito.

Por outro lado, além do imperativo moral, o racismo é também um prejuízo para as empresas: pesquisas indicam que 54% dos consumidores negros não retornam às lojas após sofrer discriminação, e muitos abandonam a categoria de luxo completamente. Nesse contexto, atender com respeito e singularidade este público se torna também um imperativo econômico.

3. Interseccionalidade e tutela diferenciada.

A abordagem interseccional, que integra raça, gênero e classe, é reconhecida pela jurisprudência como justificativa para proteção diferenciada de consumidores em situação de vulnerabilidade agravada.

Rafaela observa que iniciativas como esta “podem ser analisadas por vários ângulos: desde a possibilidade de redução de violências e crimes até o bem-estar e a dignidade propriamente ditos”.

E a aplicação dessa perspectiva no consumo implica em um reconhecimento da vulnerabilidade ampliada do consumidor negro (CDC, art. 4º, I), na adoção de políticas afirmativas que ultrapassem a isonomia formal e busquem igualdade material (CF, art. 5º, §2º) e a possibilidade de interpretação sistemática entre o CDC e o Estatuto da Igualdade Racial, gerando obrigações de adequação para fornecedores e prestadores de serviços.

Sob a ótica da defesa do fornecedor, é necessário que essa proteção diferenciada seja incorporada a políticas internas de atendimento, mas com procedimentos claros, treinamentos documentados e acompanhamento contínuo.

Sem isso, há risco de falhas de execução que resultem em responsabilização empresarial mesmo na ausência de intenção discriminatória como antes dito.

Até porque a prevenção ao racismo é também uma estratégia de mitigação de riscos empresariais, reduzindo (i) condenações por danos morais coletivos; (ii) multas administrativas e (iii) impactos reputacionais (de extrema relevância quando o assunto é racismo).

Como bem pontuou Rafaela Amorim, “estratégicas comerciais, esvaziadas e inseridas em corridas de controle de narrativa” ocorrem e particularmente entendo que para evitar essa percepção e garantir eficácia, a política interna deve:

  • Prever mecanismos de auditoria e monitoramento;
  • Ter indicadores mensuráveis de cumprimento;
  • Registrar e documentar treinamentos, atendimentos e ocorrências;
  • Possuir planos de ação e resposta para eventuais casos de discriminação, inclusive com apuração interna sobre o ocorrido devidamente documentada.

Essa política e documentação gerada não apenas fortalece a sua credibilidade, mas também serve como prova em processos judiciais, demonstrando que a empresa adotou todas as medidas cabíveis para evitar a prática discriminatória.

E a prevenção não pode ser episódica: políticas internas devem ser permanentes, com treinamentos contínuos, registros documentais e protocolos auditáveis, sob pena de responsabilização futura mesmo anos após um fato, levando em consideração especialmente a imprescritibilidade do crime de racismo ou injúria racial (espécie do primeiro).

4. Da iniciativa privada à política pública.

Para que códigos dessa natureza ultrapassem o caráter simbólico, é preciso transformar boas práticas em padrões normativos claros, o que poderia ocorrer, por exemplo, com a Integração com legislações já existentes (CDC e Estatuto da Igualdade Racial), a criação de guias setoriais, com participação de Órgãos de defesa do consumidor e representantes do setor privado e uma harmonização das medidas com o princípio da segurança jurídica, para que fornecedores saibam exatamente como cumpri-las.

Isso é importante, pois por vezes, sob o manto da responsabilidade objetiva, se escondem fatos e/ou ações que por vezes contam com a participação do consumidor ou de terceiro que, mesmo que aja em nome da Empresa, deve ser responsabilizado individualmente como fere a legislação posta.

Nesse sentido, a advertência de Rafaela sobre a importância de avançar “em todos os campos” reforça que o protagonismo privado não dispensa o fortalecimento do arcabouço jurídico — pelo contrário, deve atuar como catalisador para a adoção de políticas públicas estruturantes.

Conclusão.

O Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro, ainda que não possua força legal, constitui marco relevante na autorregulação empresarial voltada à equidade racial. Sua eficácia, no entanto, dependerá da capacidade de converter princípios em práticas monitoráveis e de inspirar o legislador e Órgãos reguladores a incorporarem tais diretrizes no ordenamento jurídico (o que entendo já passou do tempo…).

Ao integrar dimensões jurídicas, econômicas e interseccionais, a iniciativa contribui para reposicionar o combate ao racismo nas relações de consumo como imperativo normativo e estratégico, alinhado ao núcleo constitucional da dignidade humana.

Até porque como bem lembrou Rafaela, “nossos avanços e retrocessos estão atrelados à formalização ou à ausência de formalizações”.

Assim, iniciativas desse tipo devem ser vistas não como substitutas da lei, mas como complementos estratégicos que, quando bem estruturados, equilibram direitos do consumidor e segurança jurídica do fornecedor — atendendo ao núcleo constitucional da dignidade humana e ao princípio da igualdade material, colocando em foco a resolução ou ao menos minimização de uma injustiça histórica, mantendo a pauta racial no cenário privado ativa.

Mais do que um compromisso voluntário, vejo iniciativas como o Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro como um divisor de águas na forma como o mercado se relaciona com a pauta racial, até porque o entendimento consolidado pelo STF sobre a imprescritibilidade das condutas racistas reforça que a omissão não é neutra e que a prevenção é obrigação contínua.

O desafio agora é transformar diretrizes privadas como a aqui analisada em práticas permanentes e verificáveis, capazes de harmonizar proteção ao consumidor e segurança jurídica ao fornecedor, fazendo do combate ao racismo um elemento indissociável da boa governança corporativa.

E você? Já pensou sobre como o racismo no consumo se revela? O que o cidadão negro sente ao ser invisibilizado no consumo? Deixe seu comentário e vamos debater esse tema tão relevante.

Rhuana César.

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