Por Bruna Luiza Soares Reis
As casas de apostas, famosas bets, estão em destaque perante a mídia e no cotidiano de muitos brasileiros, o que traz à tona diversas discussões sobre a sua regulação e atuação dentro do território nacional, principalmente no que concerne aos beneficiários de programas sociais governamentais, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Segundo dados publicados pelo Banco Central por meio do Estudo Especial nº 119/2024, em agosto de 2024, aproximadamente 17% dos favorecidos fizeram apostas, resultando na injeção de 3 bilhões de reais no mercado.
- Histórico advém do período colonial
Apesar das casas de apostas terem ganhado notoriedade nos últimos anos, a sua trajetória é extensa, originando-se no período colonial.
As apostas foram trazidas pelos europeus no século XVI por meio dos jogos de cartas e dados. A atividade foi oficializada apenas no século XVIII, com a criação das primeiras casas de apostas direcionadas para as corridas de cavalos, passatempo comum da nobreza da época.
A trajetória da atividade passou por diversos altos e baixos, com proibições nos anos de 1917 e 1946, sob pretextos políticos.
Entretanto, a restrição imposta pelo governo não impediu a prática de apostas na ilegalidade, que passou a movimentar milhões de reais por ano. Percebendo o potencial arrecadatório das apostas, a necessidade de coibir as práticas ilegais e de estabelecer regras claras, houve diversas tentativas de regulação do setor pelo Estado.
O primeiro passo para a legalização ocorreu na década de 1960, com a criação da Loteria Esportiva centrada no futebol, por meio da qual os apostadores poderiam prever resultados de jogos e concorrer a prêmios em dinheiro.
Com o avanço tecnológico a partir de 1990, surgiram as apostas online, com a abertura de infinitas possibilidades aos apostadores, o que respaldou o caminho até a promulgação da Lei nº 13.756 no ano de 2018, pelo presidente da época Michel Temer.
A referida legislação foi vista como um marco para a indústria, vez que regulamentou as apostas esportivas de quota fixa, permitindo a operação de empresas de forma legal dentro do território nacional.
Apesar do prazo de quatro anos estabelecido para a regulamentação completa do setor, o tema ganhou relevância apenas no ano de 2023, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.790.
A lei nº 14.790 é reconhecida como a primeira legislação específica das bets, trazendo conceitos importantes sobre o sistema de apostas, forma de tributação, distribuição da arrecadação, licenciamento, fiscalização, vedações e regras para publicidade e propaganda.
Tendo em vista que a normatização recente do mercado, é natural que se tenha diversas lacunas que precisam ser preenchidas à medida que as casas de apostas operam, razão pela qual foi criada, pelo Governo Federal, a Secretaria de Prêmios e Apostas vinculada ao Ministério da Fazenda, que emite diversas portarias e decretos com o intuito de garantir a segurança e legalidade da atividade aos apostadores.
Pontua-se que, atualmente, estas portarias e demais normas são emitidas em uma periodicidade quase que mensal, o que demonstra o impacto e a relevância deste setor no cenário econômico e social do país.
- Problemática envolvendo apostadores beneficiários de programas sociais
Um desses impactos consiste na crescente popularidade das apostas online entre os beneficiários de programas sociais do governo, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Trata-se de auxílios financeiros direcionados para famílias de baixa renda e em vulnerabilidade social, com o objetivo de mitigar a insegurança alimentar e as necessidades básicas inerentes do ser humano.
O BPC está previsto na Lei nº 8.742/893 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), contando com o valor de um salário-mínimo por mês para as pessoas idosas ou com deficiência que percebem renda de até R$379,00, sem condições de se sustentarem ou de serem sustentadas pela família.
Já o atual Bolsa Família, instituído pela Lei nº 14.601/2023, fornece valores escalonados aos seus beneficiários, com um mínimo de R$600,00 e adicionais cumulativos em caso de gestação e filhos menores de 18 anos. Este auxílio é direcionado para as famílias que possuem renda de até R$218,00 por pessoa.
A grande maioria destes beneficiários são provedores e/ou utilizam esse montante para o seu sustento, razão pela qual as estimativas liberadas pelo Banco Central no Estudo Especial nº 119/2024 levantaram questionamentos sobre os valores desembolsados para jogos e apostas online.
Órgãos públicos e entidades sem fins lucrativos invocam a efetividade da função social dos direitos fundamentais e básicos como moradia, saúde e educação para este grupo inserido em uma realidade de vulnerabilidade social.
O comprometimento da renda familiar com práticas de jogos de aposta sustenta o argumento de desvio de finalidade dos benefícios, que são direcionados para as necessidades básicas de toda a família, principalmente das crianças e adolescentes.
Além disso, está em destaque o gasto público, uma vez que a lógica desenvolvida indica que o montante repassado pelo governo aos beneficiários acaba direcionado para o mercado de entretenimento de apostas.
A problemática ganhou grandes dimensões, com o ajuizamento de diversas ações promovidas pelo Ministério Público e organizações civis de diferentes localidades, com o objetivo de imputar, às casas de apostas, o dever de impedir o cadastro e utilização da sua plataforma pelos beneficiários de programas sociais.
- Responsabilidade regulatória do Estado
Apesar da problemática ser relevante e necessária no âmbito social, o ajuizamento de ações judiciais contra as casas de apostas não surtirá o efeito pretendido.
Isso porque, a responsabilidade constitucional sobre a regulação e preservação dos direitos fundamentais dos brasileiros é do Estado, conforme previsto no título II da Constituição Federal.
A tomada de medidas estruturais para a identificação, restrição ou bloqueio do acesso de usuários beneficiários de programas assistenciais envolvem políticas públicas complexas, que dependem da compatibilização com a legislação de assistência social, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e os mecanismos técnicos de operabilidade entre o banco de dados público e privado.
Além disso, a competência normativa sobre o tema de apostas está indicada no artigo 22, inciso XX, da Constituição Federal, atribuindo-a exclusivamente à União.
Portanto, não cabe ao Judiciário apreciar e exarar determinações nesse sentido, uma vez que o tema sequer foi analisado e regulamentado pelo Poder Legislativo. Trata-se da observância ao princípio da separação dos poderes, o qual está previsto no artigo 2º, da Constituição Federal.
Além do impedimento constitucional acerca da inovação legislativa ou regulamentar do Poder Judiciário, é importante destacar a incapacidade das casas de apostas, no seu âmbito privado, da instituição de qualquer deliberação quanto aos usuários beneficiários de programas sociais.
Dentro da regulamentação existente, as bets devem atuar em estrita observância as regras de instituição e fiscalização dos seus sistemas, promovendo práticas de jogo responsável, segurança da informação e efetivação das disposições do Código de Defesa do Consumidor perante todos os apostadores.
Foge da alçada das casas de apostas a tomada de qualquer medida unilateral e privada que vise a restrição de acesso à plataforma para as pessoas de baixa renda ou beneficiárias de programas sociais. Acaso tal conduta fosse concretizada, poderia ser entendida com arbitrária e discriminatória, com efeitos no âmbito da responsabilidade civil.
Com a percepção da necessidade de regulação do mercado para este grupo de pessoas em grau de vulnerabilidade social, cabe ao Estado, na sua figura de guardião dos direitos constitucionais e básicos de todo brasileiro, promover a regulamentação pertinente.
- Determinação do STF e Medidas da Secretaria de Prêmios e Apostas
As judicializações chegaram ao Supremo Tribunal Federal, por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7721 e nº 7723.
As referidas demandas tinham como escopo a análise da inconstitucionalidade das normas referentes a publicidade e propaganda de casas de apostas com menores de idade e, ainda, a utilização das plataformas pelos beneficiários dos programas sociais.
O ministro relator designado, Luiz Fux, determinou ao governo a tomada de medidas para impedir o uso de recursos de auxílios governamentais em apostas online. Tema foi pautado e julgado no plenário virtual no dia 14/11/2024, o qual acolheu a decisão do relator por unanimidade.
Observa-se que o Judiciário não tomou para si o papel de legislar, mas dentro da sua competência e do poder que lhe é inerente, determinou a tomada de medidas para que o Estado promovesse a regulamentação dessa problemática.
Essa decisão teve efeito imediato, com grande repercussão na mídia, de forma que o Ministério da Fazenda publicou a Portaria SPA/MF nº 2.217/2025 e a Instrução Normativa SPA/MF nº 22/2025, cujas disposições entraram em vigor em 01/10/2025 com prazo de até 30 dias para adequação.
A Portaria SPA/MF nº 2.217/2025 formaliza a responsabilidade das bets de impedir o cadastro e o uso da sua plataforma pelas pessoas beneficiárias do Bolsa Família e BPC.
Já a Instrução Normativa SPA/MF nº 22/2025 apresenta os procedimentos a serem observados para o cumprimento da nova regulamentação.
Para a identificação dos participantes dos auxílios, as bets devem realizar consultas no Sistema de Gestão de Apostas (SIGAP) pelo número de CPF, para verificarem se o usuário consta na base de dados de pessoa beneficiária.
Essas consultas devem ser realizadas quinzenalmente e, ainda, quando a pessoa proceder com o cadastro na plataforma ou efetivar o seu primeiro login.
Acaso tenha sido identificada a concessão do benefício nas consultas continuadas, o bloqueio do usuário deve ser realizado, com a devolução das quantias que tenha depositado na plataforma.
Apesar do prazo para implementação do procedimento seja até 30/10/2025, foram concedidos 45 dias para que as casas de apostas iniciem as consultas no sistema governamental SIGAP.
- Considerações finais
O Brasil possui um extenso histórico com jogos e apostas o que, de alguma forma, integra a cultura e padrões comportamentais do povo brasileiro. A legalização e popularização das casas de apostas online é uma comprovação factível desta premissa, mas que não exclui as questões sociais e problemáticas que podem evolver esse setor.
A legislação específica das bets foi promulgada apenas no ano de 2023, contando com diversos atos normativos, portarias e decretos, todos emitidos pela Secretaria de Prêmios e Apostas no intuito de adequar e atender as necessidades inerentes do exercício da atividade de apostas.
A utilização das plataformas de jogos e apostas online pelas pessoas beneficiárias de programas sociais pode ser entendido como um tema sensível, que levanta questões como a concretização dos direitos fundamentais e desvio de finalidade do valor auxiliado pelo Governo.
Entretanto, o dever de regulamentação e determinação de impedimento destas pessoas perante o setor de apostas não pode ser imputado ao Poder Judiciário, sob pena de violação do princípio da separação de poderes e inovação legislativa inadequada.
Além disso, qualquer medida não poderia ser tomada no âmbito da iniciativa privada pelas próprias bets, uma vez que qualquer conduta de restrição e bloqueio poderia ser interpretada como arbitrária e discriminatória, ensejando, inclusive, em responsabilidade no âmbito civil.
Portanto, a determinação do STF para que o Governo Federal tomasse medidas sobre a problemática foi acertada e dentro dos limites da sua competência, o que resultou na regulamentação pelo órgão correto, a Secretaria de Prêmios e Apostas, vinculada ao Ministério da Fazenda.
Cabe às bets, neste momento, adequar os seus procedimentos internos para cumprimento das novas regulamentações.
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