Por Rhuana César
A inadimplência estrutural e o custo elevado da judicialização continuam a impactar o sistema financeiro brasileiro. Em maio de 2025, a inadimplência total do Sistema Financeiro Nacional, considerando operações com atraso superior a 90 dias, atingiu 3,51%, mantendo trajetória de alta pelo quinto mês consecutivo.
No mesmo período, a inadimplência no crédito livre alcançou 4,9%, com destaque para o segmento de pessoas físicas, cuja taxa chegou a 6,1%. Paralelamente, a taxa média de juros das operações de crédito livre atingiu 44,0% ao ano em março de 2025, agravando o custo de financiamento e elevando o risco sistêmico da inadimplência.
Neste cenário, a morosidade das execuções judiciais representa um entrave à efetiva recuperação de ativos, prejudicando a liquidez das garantias e encarecendo o custo do crédito.
Diante disso, a promulgação da Lei nº 14.711/2023 — o chamado Marco Legal das Garantias — e, especialmente, o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 7.600, 7.601 e 7.608 pelo Supremo Tribunal Federal, representam um marco institucional de racionalização do sistema de crédito: validaram a execução extrajudicial de bens móveis alienados fiduciariamente, sem necessidade de autorização judicial prévia, desde que respeitados os direitos fundamentais e os requisitos formais legais.
A essa guinada legislativa e jurisprudencial soma-se o Provimento CNJ nº 196/2025, que instituiu regramento cartorial minucioso para o procedimento de consolidação da propriedade e busca e apreensão extrajudicial, com registro obrigatório via Central RTDPJ Brasil, notificações eletrônicas rastreáveis e prazos preclusivos para impugnação e reversão da consolidação.
Para instituições financeiras, fintechs, cooperativas de crédito e departamentos jurídicos especializados, trata-se de uma oportunidade inédita de adotar um modelo de recuperação mais célere, menos oneroso e com alto grau de previsibilidade jurídica.
Contudo, a efetividade do novo regime passa pela qualidade técnica dos contratos, rigor processual dos atos e capacitação tecnológica dos operadores.
Este artigo não tem a pretensão de esgotar o tema, mas apresentar uma análise crítica e estratégica dos fundamentos da decisão do STF e da regulamentação do CNJ, explorar o procedimento extrajudicial passo a passo, apresentar exemplos práticos, quadro comparativo internacional com outros sistemas jurídicos e oferecer orientações práticas a credores e devedores, sendo necessário por certo a busca por assessoriamente jurídico especializado.
Mais do que celebrar a desjudicialização, o momento exige domínio técnico, atenção aos detalhes formais e atuação juridicamente responsável.
Fundamentação jurídica e constitucional do entendimento do STF.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 7.600, 7.601 e 7.608, representa um marco interpretativo relevante para a consolidação do movimento de desjudicialização das execuções de garantias no Brasil.
Ao validar a constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais de consolidação da propriedade fiduciária e de busca e apreensão de bens móveis previstos na Lei nº 14.711/2023, o STF reiterou seu compromisso com a efetividade do crédito, sem descuidar dos direitos fundamentais dos devedores.
Mas qual foi a Tese fixada pelo STF?
No julgamento das referidas ADIns, foi firmada a seguinte tese de repercussão geral:
1. São constitucionais os procedimentos extrajudiciais instituídos pela Lei nº 14.711/2023 relativos à consolidação da propriedade em contratos de alienação fiduciária de bens móveis, execução dos créditos garantidos por hipoteca e em concurso de credores;
2. As diligências previstas nos §§ 4º, 5º e 7º do art. 8º-C do Decreto-Lei nº 911/1969 devem observar os direitos à vida privada, à honra e à imagem do devedor, o sigilo de dados, a inviolabilidade do domicílio, a proibição ao uso privado da violência, a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade.
O entendimento do Supremo equilibra a necessidade de eficiência e agilidade na execução das garantias fiduciárias com a observância de garantias constitucionais mínimas, como o direito ao devido processo legal e à inviolabilidade do domicílio. O procedimento extrajudicial, portanto, não é um “cheque em branco” ao credor, mas sim um rito legal alternativo, que exige observância estrita de requisitos formais e substanciais.
Principais votos e argumentos de sustentação:
Ministro Dias Toffoli (Relator):
O Relator das ações, Ministro Dias Toffoli, foi enfático ao afirmar que o procedimento extrajudicial, embora administrativo, não exclui a possibilidade de revisão judicial posterior, preservando a cláusula da inafastabilidade da jurisdição prevista no art. 5º, XXXV da Constituição Federal.
O Ministro destacou que a constitucionalidade do procedimento está condicionada ao respeito a três pilares fundamentais:
- Previsão expressa em contrato registrado em cartório (publicidade);
- Notificação prévia válida e inequívoca, com oportunidade para purgação da mora (conhecimento do devedor);
- Possibilidade real e efetiva de impugnação por parte do devedor, inclusive com acesso ao Judiciário (ampla defesa e contraditório).
Além disso, deixou claro que o procedimento não autoriza o ingresso forçado em domicílios e veda o uso de qualquer forma de violência privada, reafirmando o caráter pacífico e documental da medida.
Ministra Cármen Lúcia (Voto vencido):
A Ministra Cármen Lúcia divergiu do relator e votou pela inconstitucionalidade dos dispositivos questionados, com base em argumentos centrados nos direitos fundamentais do devedor. Em seu voto, a ministra sustentou que a medida viola a reserva de jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), ao permitir a perda da posse e até da propriedade de bens móveis sem ordem judicial.
Também apontou risco de violação à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, CF) e compromissos com a dignidade da pessoa humana, além da possível supressão do devido processo legal e do direito ao contraditório e ampla defesa, especialmente nos casos em que a notificação é feita exclusivamente por meio eletrônico ou sem confirmação adequada.
A divergência, embora vencida, foi relevante para fixar balizas interpretativas importantes que deverão nortear a regulamentação prática e o controle de legalidade desses procedimentos em situações concretas.
É sensato pensar em balizas protetivas, pois há um risco de desequilíbrio estrutural se a implementação prática falhar, especialmente na etapa de notificação eletrônica ou no caso de devedores hipervulneráveis que não compreendem o procedimento.
A informalidade pode ser usada como ferramenta coercitiva com aparência de legalidade e, em minha opinião, pode reintroduzir elementos de coerção privada. Por outro lado, o credor, diante da lentidão processual, alta litigiosidade e cultura de inadimplemento vê certamente o procedimento como luz no fim do túnel (e aqui na balança do direito, o risco vale a correção da rota).
Na prática forense creditícia, percebe-se claramente no contencioso brasileiro uma indústria da inadimplência defensiva e o resultado é um ambiente jurídico assimétrico, em que o inadimplente — mesmo ciente da dívida e do contrato — consegue usar o Judiciário como “trava” de sua própria obrigação, penalizando o credor diligente.
É fato, que a decisão do STF traz ganhos concretos aos credores:
- Redução de custos e tempo de recuperação, especialmente em carteiras de veículos, máquinas e bens de consumo durável;
- Estímulo à concessão de crédito com menores taxas, pois a liquidez das garantias reduz o risco sistêmico;
- Fortalecimento da segurança jurídica, pois cria parâmetros padronizados e auditáveis.
Ou seja, a decisão do STF deve ser compreendida, portanto, como uma correção estrutural de rota, e não como flexibilização de garantias constitucionais. Em um país onde recuperar um crédito legítimo pode levar anos — ou nunca ocorrer —, com risco elevado de litigância oportunista, oferecer ao credor um caminho seguro e célere é uma exigência de justiça, eficiência e responsabilidade econômica.
A execução extrajudicial, devidamente formalizada e com respeito às garantias mínimas, recoloca o credor no centro da equação jurídica — não como opressor, mas como agente produtivo que depende da previsibilidade e cumprimento dos contratos para sobreviver num mercado saudável.
Precedentes da Corte: coerência com a jurisprudência da desjudicialização.
Vale ainda dizer que a decisão proferida nas ADIns 7.600, 7.601 e 7.608 reforça uma linha jurisprudencial já consolidada pelo STF no sentido da constitucionalidade de procedimentos extrajudiciais na execução de garantias reais. Em especial, o Tribunal já havia reconhecido:
- Tema 982 da repercussão geral, em que se decidiu pela validade da execução extrajudicial na alienação fiduciária de imóveis, nos termos da Lei nº 9.514/1997, desde que resguardado o direito de acesso ao Judiciário;
- Tema 249, em que se reconheceu a possibilidade de excussão extrajudicial da hipoteca por credor, sem ofensa à Constituição Federal.
Esses precedentes demonstram a coerência da Corte com a tendência de desjudicialização, em busca de maior eficiência e racionalidade no sistema de crédito brasileiro — desde que respeitados os direitos fundamentais e os mecanismos de controle legal.
3. Normatização e procedimentos extrajudiciais: Provimento CNJ nº 196/2025.
Na prática, com o julgamento do STF validando a execução extrajudicial de garantias fiduciárias móveis, coube ao Conselho Nacional de Justiça estabelecer os contornos práticos da aplicação dessa nova modalidade.
Para isso, foi editado o Provimento CNJ nº 196, de 4 de junho de 2025, que institui, no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça (CNN/CN/CNJ-Extra), o Capítulo II da Seção IV, dedicado aos procedimentos extrajudiciais de consolidação da propriedade fiduciária e busca e apreensão de bens móveis junto aos cartórios de Registro de Títulos e Documentos.
Esse normativo atua como um verdadeiro “manual operacional” da execução extrajudicial e tem como principais objetivos: padronizar procedimentos, garantir segurança jurídica ao credor e assegurar direitos fundamentais do devedor, em linha com os limites constitucionais estabelecidos pelo STF.
3.1 Requisitos formais e contratuais:
O provimento exige, como condição prévia e obrigatória, que o contrato que dá origem à alienação fiduciária:
- Esteja redigido por instrumento público ou particular e registrado no Ofício de RTD do domicílio do devedor ou onde se encontrar o bem;
- Contenha cláusula expressa, destacada e clara autorizando a execução extrajudicial, conforme o art. 397-E do provimento;
- Descreva de forma precisa e individualizada o bem móvel, a forma de constituição da mora, o valor da dívida e os encargos contratuais.
A ausência de qualquer desses elementos poderá acarretar a inadmissibilidade do procedimento, cabendo ao cartório comunicar o vício ao requerente para regularização ou encerramento do processo.
3.2 Procedimento de notificação e impugnação:
O procedimento se inicia com o requerimento eletrônico do credor, via sistema da Central RTDPJ Brasil, com documentos comprobatórios da mora e da cláusula contratual. O cartório deverá, então:
- Notificar o devedor da constituição da mora, preferencialmente por meio eletrônico, com confirmação de leitura (e-mail rastreável, sistema de mensageria certificado ou equivalente). Na impossibilidade, admite-se o uso de AR físico ou até edital, observada a boa-fé objetiva;
- Conceder prazo de 20 dias corridos para o devedor purgar a mora ou apresentar impugnação limitada ao valor da dívida (art. 397-K).
Caso a impugnação seja apresentada dentro do prazo, o oficial do cartório decidirá no prazo de 5 dias úteis, podendo tentar promover conciliação entre as partes.
Importante lembrar que a impugnação não suspende o procedimento, salvo se acolhida e se for rejeitada e, a mora não for purgada, o cartório dará continuidade ao procedimento de consolidação ou apreensão.
3.3 Interoperabilidade tecnológica: Central RTDPJ Brasil.
Uma inovação relevante do Provimento CNJ nº 196/2025 é a obrigatoriedade de utilização da Central RTDPJ Brasil, plataforma integrada nacionalmente que viabiliza a tramitação eletrônica de atos entre credores, cartórios, órgãos públicos (como Detran, Bacen, RENAVAM) e sistemas de controle. O objetivo é garantir:
- Rastreabilidade e segurança documental;
- Redução do tempo de tramitação dos atos;
- Integração com bases externas para facilitar bloqueio, apreensão e alienação do bem.
A exigência de interoperabilidade eleva o padrão do procedimento para patamares similares aos observados no sistema bancário digital, mitigando riscos de fraude e assegurando transparência e auditabilidade.
3.4 Desistência, encerramento e reversão da consolidação.
O provimento também contempla situações em que o credor opte por:
- Desistir do procedimento a qualquer momento, mediante simples requerimento e;
- Reverter a consolidação da propriedade, caso o devedor, após a apreensão do bem, decida saldar integralmente a dívida dentro do prazo de 5 dias úteis contados da apreensão (art. 397-J).
Essa previsibilidade beneficia tanto credores quanto devedores, reduzindo litigiosidade e promovendo soluções consensuais em diversas situações, além de permitir ajustes contratuais e negociações extrajudiciais mesmo após o início do procedimento formal.
3.5 Garantias ao devedor e segurança jurídica ao credor.
Além disso, o Provimento CNJ nº 196/2025 busca equilibrar eficiência e proteção jurídica ao prever, simultaneamente:
- Procedimento célere e com prazos definidos ao credor;
- Garantias mínimas de defesa ao devedor (impugnação, purgação da mora, reversão da consolidação, transparência nos atos);
- Critérios objetivos para cartórios atuarem de modo imparcial, com análise formal da documentação e controle de legalidade administrativa (formalidades legais).
Essa regulamentação busca, assim, promover credibilidade, padronização e segurança jurídica ao processo, o que representa avanço significativo em relação à tradicional via judicial, muitas vezes imprevisível e onerosa.
4. Impactos para a recuperação de crédito e o sistema de garantias.
Sob o prisma de seus impactos, a decisão do STF, em conjunto com a regulamentação trazida pelo Provimento CNJ nº 196/2025, representa um ponto de inflexão no sistema brasileiro de garantias, especialmente no que tange à recuperação extrajudicial de bens móveis.
Com a institucionalização da execução extrajudicial cartorial e o reforço da segurança jurídica, cria-se uma nova via de recuperação de ativos com potencial para reduzir drasticamente a morosidade e os custos das execuções judiciais tradicionais.
4.1. Eficiência e redução de custos.
A principal vantagem para credores — em especial bancos, financeiras, securitizadoras e cooperativas de crédito — é a possibilidade de acessar um mecanismo legal de recuperação de bens sem passar pela Justiça, desde que cumpridos os requisitos legais e contratuais.
O novo modelo:
- Elimina atos processuais como citação, audiência de justificação e ordem judicial de busca;
- Reduz honorários advocatícios, taxas judiciais e prazos processuais médios que, atualmente, podem ultrapassar 24 meses para veículos e equipamentos com alienação fiduciária;
- Favorece a liquidez de garantias móveis, sobretudo veículos, maquinário agrícola e equipamentos industriais — bens de alta depreciação que demandam recuperação célere para preservar valor de mercado.
Esse cenário, sem dúvidas, fortalece a confiança dos agentes financeiros, reduz a insegurança jurídica associada às garantias e permite ampliar o acesso ao crédito com taxas mais competitivas, especialmente para o setor produtivo e o consumidor formal.
4.2. Cautelas e riscos para o credor.
Por outro lado, a agilidade do procedimento extrajudicial exige um grau elevado de rigor formal por parte do credor e de sua assessoria jurídica.
Entre os principais riscos e cautelas, destacam-se:
- Notificação mal realizada (ausência de confirmação de leitura, destinatário incorreto, e-mail inválido etc.) pode invalidar todo o procedimento;
- Falta de prova da mora real e atualizada, ou inconsistência nos cálculos apresentados ao cartório;
- Inexistência de cláusula contratual expressa e destacada que autorize a execução extrajudicial;
- Impedimento legal de consolidação da propriedade por vícios contratuais, duplicidade de garantias ou litígios paralelos.
Essas falhas podem resultar em impugnações administrativas bem-sucedidas ou até mesmo judicialização posterior, com alegações de nulidade, dano moral e perdas e danos — comprometendo o ganho de eficiência prometido pelo modelo.
Como já alertado pela doutrina e especialistas em registros públicos, “o procedimento extrajudicial confere agilidade, mas não exime o credor de cumprir rigorosamente as exigências legais e contratuais. A informalidade aqui é fonte de risco”.
4.3. Garantias dos devedores.
O novo modelo também preserva mecanismos mínimos de proteção aos devedores, que devem ser respeitados sob pena de nulidade do procedimento:
- Direito à purgação da mora no prazo de 20 dias após notificação válida (art. 397-G do Provimento CNJ nº 196/2025);
- Impugnação administrativa limitada ao valor da dívida (art. 397-K), com decisão fundamentada do cartório e tentativa de conciliação;
- Direito de reversão da consolidação da propriedade, caso o devedor salde a dívida em até 5 dias úteis após a apreensão do bem (art. 397-J);
- Direito ao contraditório, à ampla defesa e à jurisdição judicial plena, inclusive com possibilidade de ação anulatória ou reparatória, caso o procedimento seja executado de forma abusiva ou irregular.
Esse equilíbrio entre celeridade e garantias fundamentais é essencial para conferir legitimidade institucional ao novo regime de execução extrajudicial e evitar sua deslegitimação por uso indevido.
5. Análise crítica: avanços e desafios.
A execução extrajudicial de garantias fiduciárias móveis, recentemente consolidada no ordenamento jurídico brasileiro por meio da decisão do STF (ADIns 7600, 7601 e 7608) e regulamentada pelo Provimento CNJ nº 196/2025, representa um avanço institucional expressivo em termos de eficiência, padronização e segurança jurídica.
Contudo, sua implementação prática envolve riscos estruturais que devem ser reconhecidos e mitigados por operadores do direito, registradores e agentes financeiros.
5.1. A guinada pró-mercado e o equilíbrio garantidor.
A nova sistemática marca uma guinada pró-mercado no regime das garantias móveis, conferindo maior liquidez aos bens dados em alienação fiduciária, reduzindo o ciclo de inadimplência e viabilizando operações estruturadas com menor risco sistêmico.
Isso porque com a possibilidade de retomada extrajudicial — ágil, registrada e controlada — espera-se redução no custo do crédito, especialmente para setores como agronegócio, veículos e indústria de bens de capital.
Entretanto, essa eficiência contratual exige sofisticação técnica na elaboração dos instrumentos, com cláusulas destacadas sobre o procedimento extrajudicial, detalhamento da forma de constituição da mora, mecanismos de notificação válidos e tratamento específico sobre reversão e purgação.
O uso de legal design nesse contexto é interessante para esclarecer desde o momento da contratação a informações necessárias do procedimento extrajudicial. Portanto, revisar e adaptar os contratos é uma ação não só recomendada, mas necessária.
E um ponto crítico é o uso de notificação eletrônica — hoje preferencial segundo o Provimento CNJ nº 196/2025.
Isso porque o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a validade da notificação por e-mail no âmbito de cobranças extrajudiciais, desde que haja mecanismos técnicos capazes de comprovar o recebimento efetivo, como rastreio de leitura, logs de acesso, confirmação por IP ou outros elementos de ciência inequívoca.
Nesse contexto, a negligência nessa etapa pode gerar nulidade de todo o procedimento e deve ser observada e documentada pelo credor.
5.2. Potenciais riscos de judicialização em massa.
Se de um lado a proposta do marco e sua regulamentação eram a desjudicialização, por outro, atraem risco real de que o novo modelo venha a estimular litígios em outras frentes, especialmente por devedores que aleguem vícios de forma, falhas de notificação, ilegalidade da consolidação ou lesão a direitos fundamentais (o que conferiria maior grau de discricionariedade aos magistrados).
Direitos como a dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade, por exemplo, são normas de alta carga valorativa e muitas vezes genéricas e interpretar quando exatamente um direito como esse foi violado exige ponderação de valores e princípios, o que abre margem para diferentes interpretações legítimas.
Nesse contexto, poderá haver um crescimento do número de impugnações administrativas nos cartórios — ainda que formalmente limitadas ao valor da dívida — pode levar a uma saturação do sistema, o que pode ser agravado pela atuação de escritórios especializados em contencioso de massa, que enxerguem na impugnação padronizada uma nova “janela de judicialização”.
Além disso, decisões divergentes entre cartórios de diferentes estados, interpretações inconsistentes sobre requisitos formais e falta de integração com sistemas judiciais podem reintroduzir insegurança jurídica, especialmente em operações que envolvam grandes volumes ou garantias descentralizadas e criar mais uma etapa burocrática para que o credor receba seu crédito.
5.3. Questões operacionais e capacitação técnica.
Outro desafio relevante diz respeito à capacidade operacional dos cartórios de RTD para lidar com a nova demanda. O Provimento CNJ nº 196/2025 exige integração com a Central RTDPJ Brasil, interoperabilidade tecnológica e capacidade de decisão sobre impugnações, além de condutas padronizadas e registro tempestivo de atos.
Entretanto, ainda há significativa disparidade entre Estados e serventias quanto à digitalização, integração tecnológica e capacitação jurídica, o que pode gerar desequilíbrio regional, insegurança para credores e resistência na aplicação do procedimento.
Um estudo da FGV de 2024 apontou que cerca de 30% das serventias enfrentam desafios estruturais e 27% relatam dificuldade no intercâmbio de informações digitais entre si, evidenciando lacunas estruturais e técnicas relevantes.
Portanto, resta claro que a plena eficácia do novo modelo depende de:
- Treinamento técnico-jurídico dos oficiais de registro e suas equipes;
- Investimento em infraestrutura tecnológica interoperável entre cartórios e bancos de dados públicos (RENAVAM, SERP, BacenJud, etc.);
- Uniformização normativa local, por meio de provimentos das corregedorias estaduais compatíveis com o texto do CNJ, o que ainda não ocorreu em algumas unidades da federação.
Sem esses elementos, o sistema corre o risco de transformar um avanço em potencial fonte de judicialização e insegurança para todos os envolvidos.
6. Estratégias práticas para a atuação em recuperação de crédito.
Diante do exposto, verifica-se que a consolidação da execução extrajudicial de bens móveis fiduciários exige dos credores — e de seus assessores jurídicos — não apenas compreensão normativa, mas também adoção de boas práticas contratuais, procedimentais e tecnológicas e a atuação preventiva, aliada ao uso responsável da via cartorial, bem como previsões contratuais claras – já incorporando previsão sobre o procedimento – é o que garantirá a efetividade do procedimento e a mitigação de riscos de nulidade ou judicialização.
6.1. Reestruturação contratual.
O primeiro passo para viabilizar o uso seguro da execução extrajudicial é revisar os contratos de alienação fiduciária em curso e adequar os novos instrumentos às exigências formais do Provimento CNJ nº 196/2025:
- Inserir cláusula expressa e destacada, com linguagem clara, prevendo a possibilidade de execução extrajudicial, inclusive consolidação e apreensão cartorial, conforme art. 397-E do provimento¹;
- Garantir a descrição precisa e individualizada do bem objeto da garantia (ex.: marca, modelo, chassi, número de série), de forma que permita sua identificação inequívoca;
- Estabelecer de forma objetiva os critérios de constituição da mora, forma e prazos de notificação, e mecanismos de reversão ou purgação.
Esses cuidados são indispensáveis para evitar nulidades e ampliar a previsibilidade do procedimento, sobretudo em contratos padronizados de grandes carteiras (ex.: veículos, máquinas, equipamentos).
E para que reste claro o procedimento para o devedor (que nessa posição pode vir a ser, também, um consumidor, atraindo todos os direitos previstos no CDC), importante, também, que o contrato seja enxuto, claro e acessível, podendo-se utilizar técnicas jurídicas de legal design, por exemplo.
6.2. Implementação de rotinas de notificação eletrônica.
O êxito do procedimento extrajudicial está diretamente vinculado à validade da notificação enviada ao devedor. O Provimento CNJ nº 196/2025 prevê, como forma preferencial, o uso de notificação eletrônica com confirmação de leitura (e-mail rastreável, protocolo eletrônico etc.).
Recomenda-se:
- Utilizar ferramentas com registro de logs, comprovação de abertura, rastreamento de IP e integridade da mensagem;
- Quando não for possível ou houver dúvida quanto à ciência, recorrer ao AR físico com aviso de recebimento assinado, ou à notificação híbrida (física + digital);
- Evitar notificações genéricas ou por e-mails desatualizados, mantendo cadastro ativo com atualização periódica de dados de contato (nesse contexto a atualização dos dados de cada cliente é indispensável, recomendando-se que seja feita ao menos a cada 06 meses).
Essa etapa é sensível e deve ser rigorosamente documentada, pois falhas de notificação certamente serão o principal argumento para judicialização ou reversão do procedimento, equiparando-se a citação no processo judicial.
6.3. Monitoramento e compliance interno.
Para garantir eficácia e rastreabilidade do procedimento extrajudicial, recomenda-se a criação de rotinas de compliance e controles internos, com integração entre jurídico, operação, TI e cartórios.
Boas práticas, dentre uma série de procedimentos, incluem:
- Emissão de planilhas de controle com dados do contrato, status da notificação, prazos legais, etapas do procedimento e registros formais (o que pode ser feito via sistema);
- Interface direta com a Central RTDPJ Brasil, acompanhando devoluções, exigências, despachos e registros efetuados;
- Documentação fotográfica e documental de recusas, tentativas frustradas, ou falhas operacionais, com arquivamento seguro e digitalizado.
Essas medidas resguardam o credor em eventual disputa judicial futura, demonstrando boa-fé, diligência e controle institucional.
6.4. Defesa dos direitos dos devedores
A advocacia apesar do foco no credor, também tem papel relevante na defesa dos devedores — tanto no âmbito cartorial quanto judicial. Mesmo em modelo extrajudicial, subsiste o direito ao contraditório e à ampla defesa, cabendo aos advogados:
- Elaborar impugnações administrativas fundamentadas, limitadas ao valor da dívida, indicando vícios na notificação, erro de cálculo, ausência de mora ou nulidade do contrato;
- Atuar na reversão da consolidação (pagamento no prazo de 5 dias úteis após apreensão) ou requerer a devolução de valor excedente em alienação do bem;
- Propor ações judiciais anulatórias, de obrigação de não fazer ou de indenização, caso o procedimento tenha sido executado com violação de direitos fundamentais ou em desrespeito às exigências do Provimento CNJ nº 196.
A atuação defensiva se fortalece com provas documentais sólidas, inclusive de má-fé do credor ou ausência de ciência inequívoca da notificação e o que se percebe é que a fiscalização e o equilíbrio do sistema dependem de advocacia técnica e estratégica, tanto para credor como para devedor.
7. Conclusão.
A validação da execução extrajudicial de garantias fiduciárias móveis pelo Supremo Tribunal Federal, em harmonia com o Provimento CNJ nº 196/2025, representa uma inflexão decisiva no sistema brasileiro de recuperação de crédito, pois ao conferir segurança jurídica, celeridade e previsibilidade ao procedimento de consolidação da propriedade e busca e apreensão de bens móveis, o novo marco normativo oferece às instituições financeiras um caminho mais racional e eficiente para enfrentamento da inadimplência.
Essa desjudicialização, no entanto, não equivale a uma simplificação leviana. Ao contrário, exige sofisticação contratual, rigor formal, integração tecnológica e capacitação jurídica de todos os operadores envolvidos — credores, advogados, cartórios e sistemas internos de controle.
O ganho de eficiência só se concretiza quando o procedimento extrajudicial é adotado com pleno respeito aos direitos fundamentais dos devedores e estrita observância das exigências legais e normativas e, além disso, o sucesso do novo regime depende da construção de uma cultura institucional de boas práticas: contratos bem redigidos, notificações rastreáveis e inequívocas, controle documental detalhado e canais adequados de impugnação e reversão.
Não se trata apenas de “retomar bens com mais agilidade”, mas de reorganizar o ciclo do crédito em bases mais seguras, sustentáveis e proporcionalmente equilibradas entre credor e devedor.
Por fim, é fundamental reconhecer que a efetividade da execução extrajudicial não reside apenas na legislação ou na jurisprudência — mas na capacidade do sistema de se autorregular com responsabilidade técnica e ética.
Ao credor, cabe profissionalismo e diligência.
Ao devedor, responsabilidade, transparência e boa-fé.
Ao Judiciário, o papel subsidiário e corretivo de aspectos formais e direitos fundamentais.
E à sociedade, a vigilância democrática para que o avanço na eficiência não implique em retrocesso de garantias.
Trata-se, portanto, de um ponto de partida — não de chegada — para a construção de um novo paradigma de recuperação de crédito no Brasil: mais célere, menos litigioso, mas igualmente justo e garantidor.
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