Artigos - Postado em: 02/07/2018

O âmbito de responsabilização penal de gestores de uma instituição financeira pelos crimes financeiros de gestão fraudulenta e de gestão temerária

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O objeto de tutela da Lei nº 7.492/1986, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, é exaustivamente delimitado pelo próprio legislador, que dedica o artigo 1º e seu parágrafo único para definir o que deve ser considerado como “instituição financeira” e suas “figuras equiparadas”, respectivamente, para ser abarcada pela proteção da lei.

Nos termos do artigo 1º, considera-se instituição financeira toda “pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários”. Já o parágrafo único equipara à instituição financeira “a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros”, bem como “a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual”.

Por outro lado, a responsabilização penal de gestores de instituições financeiras pela prática dos crimes financeiros de gestão fraudulenta e de gestão temerária, previstos no art. 4º, caput e no parágrafo único da Lei nº 7.492/86, respectivamente, comporta uma análise mais detida, no afã de se delimitar seu âmbito de incidência.

Afinal, qual a distinção entre estes dois tipos penais? Eles abarcam condutas comissivas ou omissivas? E que tipo de gestor de uma instituição financeira pode ser por eles responsabilizado?

A rigor, de comum os referidos crimes, na ótica de LUIZ REGIS PRADO[1], objetivam tutelar “[…] a higidez da gestão das instituições financeiras e das atividades daí decorrentes, com a consequente proteção do patrimônio da instituição financeira e dos investidores […]”.

É válido ressaltar, contudo, conforme a lição de LUCIANO FELDENS[2], que “[…] não será qualquer ato ilícito praticado em qualquer instituição financeira que encontrará aptidão a ocasionar uma situação de risco […]”, mas sim nos casos em que houver real possibilidade “[…] de que atos fraudulentos ou temerários tomados na gestão de uma instituição financeira levem à perda da confiança dos depositantes, ocasionando corridas bancárias e a subsequente insolvência de uma instituição financeira […]”.

Nesse diapasão, pode-se afirmar que o crime de gestão fraudulenta implica na administração, na gestão ou direção dos negócios com o emprego de conduta fraudulenta, isto é, uma ação baseada na má-fé com o fito de enganar, de iludir, mediante o emprego de ardis e artifícios que produzam – ou ao menos tenham o potencial de produzir – resultados indevidos, seja para o próprio agente ou para terceiros.

Em contrapartida, o crime de gestão temerária está ligado a uma atuação arriscada, perigosa do gestor, na consecução de atos arrojados e que, eventualmente, possam violar limites prudenciais mínimos. Igualmente, uma má-gestão ou, até mesmo, uma gestão deficiente pode vir a ser interpretada pelos órgãos de persecução penal como temerária pela simples omissão daquele que possuía a obrigação legal (ou contratual) de agir para evitar o resultado. Sobretudo porque o tipo penal não exige a efetiva ocorrência de prejuízo à instituição financeira (crime formal), de modo que basta o risco/possibilidade da sua ocorrência[3], seja em decorrência de uma operação arriscada efetuada, como também em virtude de uma exposição desnecessária.

A despeito destas distinções entre os tipos penais sob análise, é certo que ambos são classificados pela doutrina como crimes próprios, isto é, somente podem ser praticados por sujeitos qualificados, que possuam efetivo poder de gestão, de mando ou de direção da instituição financeira, isto é, de decisão sobre os atos de administração e atividade da instituição. Trata-se, portanto, de uma qualidade especial exigida tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência pátria, para que o gestor possa efetivamente ser responsabilizado por atos de gestão fraudulenta ou temerária.

Até porque, a possibilidade de responsabilização penal não está vinculada ao cargo de gestão que o indivíduo exerce na instituição financeira, mas sim a efetiva existência (ou não) da qualidade especial do poder de decisão. Daí porque, interpretando-se a redação legal do artigo 25 da lei sob estudo, não somente o sócio estatutário ou o controlador podem ser responsabilizados, como também eventuais diretores e gerentes da instituição financeira.

Nesta senda, dessumem-se da jurisprudência pátria julgados responsabilizando, até mesmo, gerentes de agências bancárias que possuíam plenos poderes decisórios sobre a administração da unidade em que ocorreram os fatos, a exemplo do voto proferido pelo E. Des. Federal JOSÉ LUNARDELLI na relatoria da apelação criminal nº 0011036-18.2011.4.03.6181/SP, julgada pela C. 11ª Turma do E. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO em 16/02/2016[4].

Frise-se, por outro lado, não ser necessário que os atos tidos como fraudulentos ou temerários sejam efetivamente relacionados à atividade financeira principal da instituição. Foram localizados nos Tribunais precedentes imputando a gestores atos fraudulentos ou temerários que não constituíam o core business da instituição financeira, como por exemplo, a responsabilização de gestores de uma administradora de consórcios (figura equiparada à instituição financeira)[5], a responsabilização de um diretor jurídico e membro do Conselho de Administração de banco[6] e, até mesmo, de gerente comercial de cooperativa de crédito[7]. 

Questão que também merece breve destaque é a que envolve a responsabilidade do compliance officer de uma instituição financeira, tema esse que foi objeto de análise no julgamento da Ação Penal nº 470, núcleo financeiro, pelo Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Em linhas gerais, dentre os personagens deste núcleo que foram posteriormente condenados pelo STF, um destes indivíduos era justamente o responsável pela área de compliance do Banco Rural[8].

Analisando especificamente o debate jurídico que envolveu o tema, HELENA REGINA LOBO DA COSTA e MARINA PINHÃO COELHO ARAÚJO[9] fazem precisa análise, pontuando o entendimento que prevaleceu entre os Ministros de que a responsabilidade criminal deveria ser reconhecida pela figura do crime comissivo por omissão, nos termos do que prevê o artigo 13, §2º do Código Penal. Sobretudo porque, ainda que este indivíduo condenado não tenha participado diretamente das condutas, ainda assim, na condição de compliance officer, determinou a “[…] a alteração dos relatórios internos do banco relativos a compliance e prevenção da lavagem de dinheiro […]”. Assim, justamente em virtude desta função por ele exercida, os Ministros sustentaram que o “[…] descumprimento doloso ou culposo gera a responsabilização pelo resultado, como se tivesse sido cometido por ação […]”, notadamente nos casos em que o compliance officer, na estrutura da empresa, possuir “[…] poderes de administração ou, ao menos, de veto de ações da administração […]”. Assim, em tais situações, há o dever de agir deste indivíduo de, ao menos, reportar os possíveis e eventuais ilícitos que chegaram ao seu conhecimento, sendo certo que, “[…] se, neste caso, a administração decide por nada fazer, terá o compliance officer agido (evidentemente não se podendo cogitar de crime omissivo cometido por si), sendo a responsabilidade imputável à administração […]”.

Muito embora a responsabilidade penal do compliance officer seja de pouca reflexão nos Tribunais pátrios, notadamente nas situações em que ele poderia agir para evitar o resultado, denota-se ser possível que a interpretação que venha a prevalecer nessa situação e de outras semelhantes (um diretor jurídico, v.g.), é a de que tal omissão poderá ser penalmente relevante, pelo chamado “crime comissivo por omissão” (art. 13, §2º do Código Penal). Por este instituto, o sujeito, muito embora não atua para a consecução do delito, responde pelo crime justamente por ter “deixado de agir para impedir o resultado”, seja porque detinha uma obrigação legal ou contratual, assumiu por qualquer forma esta responsabilidade ou, ainda, se colocou em tal situação por um comportamento anteriormente criado por ele.

Denota-se, portanto, que o âmbito da responsabilidade penal de gestores de instituições financeiras, em se tratando da prática dos crimes de gestão fraudulenta e de gestão temerária, não é exauriente.

Por outro lado, com base na doutrina e na jurisprudência, entende-se que esta eventual responsabilidade penal estará atrelada a verificação, no caso concreto, da existência de efetivos poderes de direção do indivíduo da instituição financeira, independentemente do cargo por ele exercido, ou, ainda, da existência de um “dever jurídico de agir” atrelado às suas funções de, efetivamente, poder vetar ações que aparentam ser arrojadas ou reportar operações suspeitas.

De modo que, se ausentes os efetivos poderes de gestão e de atuação dentro da instituição financeira, ao menos em tese, não há base para que tal indivíduo seja responsabilizado penalmente por atos fraudulentos ou temerários que, eventualmente, forem praticados no âmbito de uma instituição financeira.


Luís Fernando Ruff é advogado da equipe Penal Empresarial do Chenut Oliveira Santiago Advogados.

[1] Direito Penal Econômico, 3ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 160.

[2] Gestão Fraudulenta e Temerária em Instituição Financeira: contornos identificadores do tipo. VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flávia Rahal Bresser; NETO, Theodomiro Dias (coord). Direito Penal Econômico: crimes financeiros e correlatos, São Paulo: Saraiva (Série GVLaw), 2011.

[3] “[…] sobre a gestão temerária, é certo que existem muitas divergências no campo doutrinário e jurisprudencial acerca do seu conceito, todavia, é possível afirmar que o crime exige para sua consumação a ocorrência de efetivo perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, ou seja, risco real de dano contra o Sistema Financeiro Nacional, […]. Não há necessidade de efetivo dano, como parecer ter sido o caso dos autos, mas apenas do efetivo perigo deste […]” (TRF-5, 4ª Turma, EI em Apelação Criminal nº 2003.83.00.006033-2/02/PE, Rel. Des. Federal MANOEL DE OLIVEIRA ERHARDT, j. em 08/05/2013).

[4] “[…] Para que condutas fraudulentas tomadas dentro de instituição financeira possam ser consideradas ‘gestão fraudulenta’, deve ser o praticante alguém com poderes de gestor, de administrador, de diretor. Tais cargos, embora com diversas configurações, trazem como ponto comum o poder de decisão sobre séries de atos de administração e atividade da instituição, seja em âmbito territorialmente restrito, mas com competência materialmente ampla (caso dos gerentes-gerais de agência de banco de varejo), seja em âmbito territorialmente amplo, mas materialmente restrito (caso dos diretores de área da instituição financeira), seja ainda, com competências materialmente amplas e territorialmente abrangentes (caso do diretor-presidente de uma instituição). […] 3. No caso concreto, o réu possuía efetivos poderes de gestão, tendo amplo grau de comando sobre as ações da agência […]”

[5] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, 7ª Turma, Apelação Criminal nº 5068999-25.2011.4.04.7100/RS, Rel. Des. Federal SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, j. em 03/06/2014.

[6] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, 8ª Turma, Apelação Criminal nº 2006.70.00.012361-8/PR, Rel. Juiz Federal convocado ARTUR CÉSAR DE SOUZA, j. em 15/12/2010, DJe 12/01/2011.

[7] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, 7ª Turma, Apelação Criminal nº 5008201-26.2010.4.04.7200/SC, Rel. Juíza Federal convocada SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, j. em 05/02/2013.

[8] “[…] Vinícius Samarane, […] era, em 2002, diretor de Controles Internos, sendo o responsável pela auditoria e inspetoria do grupo. Em 2004, Samarane foi eleito diretor estatutário de controles internos e compliance […]”. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-ago-30/relator-afirma-dirigentes-banco-rural-fraudaram-emprestimos> Acesso em 10 mai. 2018.

[9] Compliance e o julgamento da APn 470. Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCrim), ano 2014, nº 106, p. 215/230.

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