Artigos - Postado em: 22/06/2018

Guarda de animais a partir do término do relacionamento

[:br]Direito de visitas a animal de estimação

 

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, ontem, caso que aborda a possibilidade jurídica de regulamentação de visitas a animais de estimação a partir do fim do enlace afetivo do casal (decisão ainda não publicada). O caso em exame foi proposto por um homem impedido pela ex-companheira de conviver com a cadela do casal após o término da união estável, fato que gerou angústia em razão da ligação afetiva estabelecida com o animal.

Segundo noticia o STJ em seu site, a ação de regulamentação de visitas foi ajuizada para assegurar o acesso do ex-companheiro à cadela, que teria permanecido com a mulher. A discussão de fundo parece ter sido a aplicação, por analogia, do instituto da guarda de menores para regulamentar a relação entre as pessoas e animais domésticos, ao menos até que a legislação seja adequada à nova realidade.

A decisão inédita da Corte Superior, tomada por maioria de votos, manteve o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, para fixar as visitas do ex-companheiro à cadela em períodos como fins de semana e feriados. O julgado prestigiou a disposição contida no Código Civil, que classifica os animais como bens semoventes, mas buscou uma releitura do instituto baseada no afeto e na preservação da dignidade dos donos do animal.

O relator do recurso, Ministro Luis Felipe Salomão, esclareceu que o caso concreto justificou o emprego da medida de regulamentação de visitas, pois foi demonstrado o vínculo afetivo do ex-companheiro com o animal, relação que mereceria proteção, ainda que por um lapso de tempo, para “atender os fins sociais e a própria evolução da sociedade. (…) Reconhece-se, assim, um terceiro gênero, em que sempre deverá ser analisada a situação contida nos autos, voltado para a proteção do ser humano e seu vínculo afetivo com o animal.”. Destaque-se que o STJ não aplicou o instituto da guarda de filhos, à medida que deixou claro que os animais domésticos não são sujeitos de direito segundo nosso ordenamento.

Discussões similares são travadas nas Cortes de todo o país, e têm como pano de fundo o status de coisa atribuído aos animais pelo Código Civil (artigo 82) versus a intensa transformação sofrida na composição e formato dos núcleos familiares. Diante do interesse de ambas as partes em permanecer com o animal, não há previsão legal que disponha sobre sua titularidade e guarda.

Coisas são institutos jurídicos que possuem cunho econômico, sujeitos a serem simplesmente possuídos e partilhados, prerrogativas que não correspondem aos anseios da sociedade atual em relação aos animais domésticos, considerados como integrantes por muitas famílias.

Os defensores da tese destacam que os ‘pets’ não podem ser tratados como objetos, pois são dotados de sensibilidade e ocupam espaço relevante na dinâmica das famílias atuais. É o que a doutrina nomeia de “animais sencientes”, partindo da premissa de que possuem sensibilidade e percepção consciente de si próprios e do ambiente ao redor.

Há um projeto de lei em curso no Brasil sobre a matéria (PL 6799/2013), para que os animais deixem de ser tratados como coisas, e passem a ser classificados como sujeitos de direitos despersonificados. A mudança de paradigma é pleiteada não somente pelos donos de pets, mas por associações defensoras dos animais, que acreditam que a medida minimizaria situações de maus-tratos e abandono.

O movimento é de escala mundial: países como a França, Áustria, Suíça, Alemanha e Nova Zelândia promoveram alteração em suas legislações para que os animais sejam tratados como seres sencientes, e não mais na categoria de bens móveis (semoventes). O assunto da classificação dos animais como sujeitos de direito atípicos é pauta de debates em muitos outros países.

Cabe lembrar que o princípio constitucional da dignidade humana aponta para a tutela jurídica do interesse e afeto das partes, e não do animal. Ainda que surjam outras decisões favoráveis, na esteira do caso mencionado acima (como resposta à urgente demanda social), repensar o tratamento normativo dispensado aos animais é medida que se impõe.

Em que pese parte da doutrina considerar a afetividade como princípio jurídico implícito¹, decorrente da dignidade humana, uma segunda corrente² a considera como valor, desprovido de caráter judiciário. O afeto há que ser considerado no plano da ética, e não das obrigações jurídicas. Conforme bem explica Lenio Streck, ao fazer o paralelo entre ativismo e judicialização³, novas realidades precisam ser acomodadas, desde que assegurada a segurança jurídica e em alinhamento com a ordem constitucional.


Marina Lima Pelegrini Oliveira é advogada do escritório Chenut Oliveira e Santiago em matéria de Direito das Famílias. Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Graduada pela Faculdade de Direito Milton Campos (2002). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

1 LOBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 49.

2 VIEGAS, Claudia Mara de Almeida Rabelo; POLI, Leonardo Macedo. Os efeitos do abandono afetivo e a mediação como forma de solução de conflitos paterno-filiais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 110, mar 2013. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12913> Acesso em 20 jun. 2018.

3  STRECK, Lenio Luiz. Entre o ativismo e a judicialização da política: a difícil concretização do direito fundamental a uma decisão judicial constitucionalmente adequada. Revista Espaço Jurídico, Santa Catarina, vol. 17, Editora Unoesc, 2016, Pp 721-732.

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